O roteiro era bem conhecido, e todo roteiro conhecido é uma prisão. De dia, auxiliar de escritório; de noite, estudava em escola pública. A casa era numa espécie de sítio dentro da cidade e voltar para lá sozinho na escuridão me fez um grande colecionador de faroletes. Uma pequena luz no meio da noite pode não nos proteger dos perigos, mas faz dos vaga-lumes nossos companheiros.
A rotina seguia, ao chegar da escola, ligava a televisão em preto e branco, que levava um tempo enorme para lhe surgir a imagem. Dava tempo de ir para a cozinha fuçar o que sobrou da janta. O silêncio da casa em que todos dormiam era meu quintal, meu parque de diversões. Sentia que naquele momento é que começava, de fato, o meu dia. Para muitos, era momento de descanso, para mim, começava o divertimento. E foi assim que me apaixonei pela noite, e foi ela que me apresentou à madrugada.
A casa não tinha forro. Dava para ouvir a chuva cair desde as primeiras gotas, o assovio do vento que flauteava suave, ou até sentir no rosto a brisa fria quando havia goteiras naquele ar úmido que invadia desde as janelas barulhentas. A jabuticabeira na janela do meu quarto fazia sombra, mesmo à noite. Sombra do sol, da lua, das estrelas. Sombra da chuva.
Quase todas as noites, o roteiro era assim. Mas houve um dia diferente que jamais esqueci.
Meu pai, já deitado e ouvindo rádio sertaneja, dizia:
- Desliga a televisão e vai dormir!
- Já vou, já vou, pai! (Eu precisava saber as notícias do dia. Via todos os telejornais. Era preciso saber que hoje era aquele dia.)
Passava um tempo, e ele:
- Se eu for aí desligar essa televisão, você vai ver só!!!
- Tá bom, pai! (Era uma resposta automática, nem pensava para falar.)
Algum tempo depois, já no quarto, ligava a luz para ler e escrever. Nunca sabia direito o quanto era necessário ler para depois escrever, na dúvida, eu fazia os dois. Porém, como os quartos não tinham forro, iluminava também o quarto ao lado, de quem? Dos meus pais. E o roteiro seguia, após mais algum tempo, do outro lado da parede, eu ouvia:
- Desliga essa luz aí, rapaz! Às quatro e meia eu tenho que levantar para ir para a roça e você não me deixa dormir.
- Estou lendo, pai! Já vou. (E nada de desligar.)
Do outro lado, parece que a parede gritava junto:
- Lendo o quê!? Vai estragar as vistas desse jeito!
- Já estou acabando, espera mais cinco minutos. Tá?
E mais uma vez, o ultimato:
- Se eu tiver que levantar da minha cama e ir aí apagar essa luz...!!!!!!!!!!!
- Tá bom!!! Affffff
Sempre que perguntava aos meus pais o motivo de dormir, a resposta era que precisamos acordar no dia seguinte. Ou seja, dormir para acordar. Dormir sempre foi uma espécie de morte pela sedução; o sono, uma espécie de veneno que a consciência nos faz provar. Jamais me rendi totalmente à escuridão que me toma pelas mãos até o dia seguinte. Todo despertar me faz renascer e a madrugada era minha trincheira.
Desligava a luz, acendia as velas. Começava minha atividade clandestina. Minha alma clandestina sobrevivia iluminada na penumbra. Sim, eu tinha maços e maços de velas, já que meus faroletes não davam conta de iluminar os livros e revistas que eu teimava em ler. Sob a luz de velas, as letras faziam sombra e dançavam. Era uma espécie de texto vivo.
Para desespero de qualquer primogênito, ter quatro irmãos menores que fuçavam meus papéis me tirava do sério. Todos os dias meus poemas em folhas soltas eram rasgados ou feitos bolinhas para guerrear. Por causa disso, busquei uma forma supostamente segura de guardar meus segredos. Montei uma caixa, colando os cartões perfurados de loteria esportiva na qual meu pai jogava semanalmente. Os comprovantes se acumulavam pelas gavetas da casa. Maços e maços de esperanças adiadas. (Talvez o maior mérito do jogo seja entorpecer a esperança até a próxima rodada.) Mas para mim serviram de cofre camuflado onde passaria a guardar meus textos, meus faroletes, minhas estrelas, meus amores não-correspondidos.
Certa madrugada, ainda tremulava a última vela sobre a escrivaninha quando percebi que iluminava menos, e menos, e menos... O sol vencia a guerra e começava a invadir o quarto pela janela. Os galos anunciavam que eu estava perdido. Dali a alguns minutos era eu que teria que ir trabalhar sem ter dormido.
Havia sido seduzido pela madrugada, que me havia segurado em seus braços, à luz de velas, como uma amante exigente e irresistível que me consumia até as últimas energias. E depois fugira do meu quarto nos primeiros raios de sol, deixando-me sozinho. Vencido, guardei meus papéis no cofre encantado e fui enfrentar o dia dos mortais.
Trabalhei normalmente pelo menos e, enquanto voltava para casa, já estava totalmente envenenado, cambaleante. Esperava me entregar à escuridão do sono como quem precisa morrer urgentemente. Por sorte, ou azar, naquele dia não havia aula. Às sextas-feiras não havia aula por decisão unânime da mediocridade.
O sol já saía de cena e borrava de vermelho o horizonte. Já dava para ver a minha casa e os pequenos brincando no quintal. Chegando no portão, veio o menor:
- Tato, valeu pelas folhas! (E lançou um aviãozinho de papel.)
- Que folhas? (Falei enquanto já acompanhava o voo.)
Pelo quintal, muitos outros aviõezinhos de papel. Meus poemas todos enfim ganhando vida? Alguns feitos barcos de papel, quem sabe por fim conhecendo o mar? Sem forças de reclamar, olhei para o lado oposto àquele onde o sol se punha. A noite erguia seu manto negro engolindo meu olhar. O ciclo cumpria seu ritual, mas nesta noite a madrugada teria que esperar.