Sim, eu já tive uma fofolete. As pessoas têm confissões a
serem feitas ao próprio passado, o meu é a minha fofolete azul esmaecido roubada
de uma lata de lixo na calçada. Por certo, alguma garota a trocou por uma Barbie.
Esta não, ela veio sem nome. Livre para ser herói, ou heroína, nos meus
teatros. Um personagem bebê. Talvez o fato de me considerar salvador da
bonequinha minimizasse a vergonha por deixar de lado meus carrinhos de madeira para
dar voz àquele ser careca e olhos azuis esbugalhados. Salvando-lhe a vida,
fiquei-lhe escravo da memória.
Fomos
companheiros em inúmeras tardes de aventuras pela horta e pelo quintal. Ora
voava até o limoeiro, ora mergulhava na poça da chuva. Projetava meu corpo
naquele fantoche de sonhos que pensava viver. Seu corpo era de pano preenchido
por bolinhas de isopor, o que fazia a minha heroína adaptada a diversos
desafios, especialmente aventuras aquáticas. Absorto em tarde à sombra da
parede embolorada, surgiam momentos sem enredo, sem vilões; contemplações de
bolha de sabão enquanto soprava com a boca as tormentas marinhas na bacia em
que minha mãe colocava de molho as roupas de verão.
Com o tempo, veio o total desbotamento
no azul do seu corpo. O suposto rosado em seu rosto já beirava o amarelo dégradé.
Depois de diversas primaveras, a fofolete passou o inverno inteiro na gaveta
junto com as meias. Aos poucos me dei conta de que ela não envelhecia; teimava em
se esconder entre as flores, enquanto eu já conseguia subir no limoeiro.
Quando veio morar comigo, já estava
desgastada, de forma que não a vi nascer, mas comigo ela viveu o suficiente
para não morrer de novo. Não me recordo qual foi o seu destino. De volta à lata de
lixo? Talvez esteja até hoje no ovinho de onde veio embalada. Quem sabe?
Não houve despedida, não houve choro. Será que não está aí na sua gaveta?
Neste instante, o arrepio de inverno me percorre a espinha. Há o que existe agora, e depois não existe mais. Não se pode ignorar as pequenas lembranças, pois cantam como pássaros
raros no coração das matas. Podem cantar uma vez na vida, e nunca mais.
14 comentários:
Emerson,
Eu também já tive uma fofolete! E você me fez lembrar disso esta manhã. Uma doce e distante lembrança...Obrigada! Belo texto.
Abraços.
Eu já quis ter uma fofolete! A sua, como a maioria das minhas bonecas, partiu sem despedida. Isso é bom... Sem sofrimentos.
Adorei a sua postagem, a sua confissão por ter tido um brinquedo exclusivamente feminino, mas que com certeza ajudou você a se tornar um grande homem.
Aproveito a oportunidade para deixar a minha confissão também rsrs
http://clarissereis.blogspot.com/2011/09/voltando-ser-menina.html
Eu nem sei o que dizer, pela primeira vez, aqui.
Mas você entendeu.
:)
O bom de ser sua irmã é isso.
Ainda tenho um urso de pelúcia no meu quarto. Lembrar de tempos mais simples.
Eu tive um Peposo! hehe... era um ursinho de pelúcia. Ele ainda vive por aqui, no lugar das tralhas da casa. Quase um fantasma rondando o que eu já fui. E é engraçado como a gente tem vergonha desse passado, prefere deixar ele escondido em algum porão, seja ele mental ou físico. Mas enfim. Obrigado por compartilhar conosco a sua convivência com a fofolete! Abraços
Emerson,
As lembranças são sopros de vida, que nos remetem a um tempo que não volta. São momentos que se eternizam; que atravessam o tempo e nos levam a um lugar ao qual pertencemos mais, mas no instante da viagem, é como se estivéssemos lá. Foi assim que me senti quando li sobre as lembranças da sua fofolete. Eu também tive uma, vermelha, e não lembro como nos perdemos.
Adorei seu texto.
Não me fala de fofolete que eu fico boba rsrrs tenho uma fofolete violeta que me segue pela casa com sua fofura extrema que cabe na palma da mão.
saudades da minhaa fofolete..ainda estes dias pensei em comprar uma.....
Feliz aniversário, Emerson (atrasado).
Muitas felicidades.
Guilherme
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Me apaixonei pelo seu texto! Você deu voz a sentimentos meus, que eu esqueci.
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