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É tudo fantasia


Chovia colorido naquela noite. Pensei que iríamos a mais uma novena e adormeci debaixo daquela manta azul no ombro do meu pai. Mas fomos para o centro da cidade, na rua treze de maio, onde voavam serpentinas e confetes derramados no asfalto, revolvidos pelo vento das saias das baianas: senhoras sorridentes que dançavam sem se esbarrar.  Era carnaval, mas eu não sabia ainda. O tempo é impreciso quando mais precisamos dele. E naquela noite eu ainda não precisava.
De repente, rostos, pessoas vindo, e um barulho que se aproximava balançando o chão. Eu chorava e não entendia o motivo de tanta gente sorrir com aquele ruído encantado demais para me deixar dormir no colo, agora de minha mãe. Fiquei no chão amontoando papéis e lantejoulas desprendidas de fantasias. Criança escolhe a magia que quer ver.
“- Dá ele aqui”, gritou um palhaço que passava fazendo malabares com argolas. Ele parou com as argolas por um instante e veio até nós.
Naquele momento, passistas eram os senhores da alegria dos que estavam atrás da corda estendida na calçada, hipnotizados. Minha mãe não titubeou:
- “Óia, fiio, o palhaço ta te chamando”. Pegou-me pelos braços e entregou ao estranho, colorido e sem nome.
“- É carnaval, menino! Tenha medo não. É tudo fantasia!” – disse ele. 
Fui levado pela correnteza daquele sorriso falso pelos minutos mais longos que a memória tentaria esquecer. E não esqueci, menos pelo medo, mais pelas descobertas.
O palhaço me colocou no chão e pediu para dançar. E quem conseguia? Tropecei numas serpentinas estúpidas que antes me divertiam. Senti mais forte o retumbante som que me fazia tremer de medo. Era a bateria. Não sei de onde ele tirou a ideia de que eu estava me divertindo. Adultos são assim, vestem-se de cores e sorrisos falsos e pretendem ensinar criança a brincar. Eu preferia brincar de amontoar confetes, como estava fazendo antes. A cada passo que dava, olhava de volta para ter certeza de que meus pais não tinham me dado embora, definitivamente.
Passamos por uma velhinha doce que me ofereceu pipoca e uma mocinha que nos jogou  serpentinas e lançou um sorriso interno, expressivo; franzia as bochechas e flamejava os olhos, mas se escondia. Um dia me peguei enxergando o sorriso da menina, muito tempo depois.
Ao perceber que a luta era em vão, esbocei um choro e acabei sorrindo. Era minha forma de me dar por vencido e voltar para junto de meus pais. O palhaço venceu. Era carnaval e, quem sabe, ninguém tinha o direito de ser apenas si mesmo. A vida que se deixa levar é uma escolha da qual não se pode voltar atrás. 

Por fim, estava no colo da minha mãe: menos são, menos salvo; estava condenado para sempre a levar dentro de mim o palhaço a dizer: “não tenha medo, é tudo fantasia!” 

Unknown

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