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ABRE-TE INSTANTE (de 1994)



A vida constantemente nos revela paisagens, detalhes do quotidiano, sinais místicos que nos tomam de assalto e marcam para sempre. São como peças de um quebra-cabeça cuja imagem de fundo é o nosso próprio destino. Aquele besouro brilhante, um rosto perdido numa viagem, ou o pão-com-manteiga que a mamãe punha na lancheira são momentos/imagens únicos onde não há mais sonho ou passado, distância ou acaso, apenas um coração feito labirinto. Comigo também foi assim... Um sonho? Talvez. Era apenas um ipê que deixava cair suas folhas ao vento numa tarde de primavera. Um instante, vestígio da eternidade, foi suficiente para unir-nos para sempre.

Conhecemo-nos naquele dia da minha infância. Eu era policial mirim e já estava atrasado para a chamada. Caminhava apressado, cabisbaixo, quando elevei os olhos. Congelou-se o tempo dentro de mim. Uma porta abriu-se para além do meu nascimento, para além de tudo o que eu vivera. Era tardezinha, o sol avermelhava o espaço por detrás da praça Francisco Simões, em Dois Córregos. O céu se dividia entre noite e dia sobre minha cabeça. O véu dourado que o sol levava consigo ofuscava as estrelas que nasciam. Como num sonho, pássaros ainda cruzavam o céu na volta aos seus ninhos enquanto uma brisa fazia dançarem as flores daquele ipê que flutuava no meu encantamento. Um fio tênue de luz nos transfigurava. Havia um pacto de sonho entre nós.

Na infância todos os sonhos são possíveis, todas as imagens indeléveis, todos os medos eternos. Hoje o tempo nos separa como as duas margens de um rio. Vejo-o no mesmo lugar em outra dimensão. Às vezes uma lágrima indecisa me invade por dentro e a memória múltipla transborda em sons, cores e aromas. Chega novembro, finados - tempo de melancias na Avenida da Saudade. Tudo entre nós parece desvanecer-se no espaço. Mas quando sopra o vento levando e trazendo ilusões, meu ipê está ali naquele canto, naquele bosque, em qualquer lugar.

Dedico-lhe devaneios em certos momentos, mas como se viajasse pelo tempo e espaço. Descubro sua presença em outras imagens. Às vezes sigo para um lugar elevado para ver a cidade à noite, o fervilhar das luzes e mentes. Imagino o multiplicar do mundo, a vida acontecendo sob o véu negro da escuridão. Contemplo o sem-sentido, relembro a morte certa e o futuro além daquela esquina, daquele pôr-de-sol. Crio mundos onde repousar meu esquecimento. Talvez em algum deles aquele ipê seja um caminho, um amigo que se foi, um sorriso materno, ou aquele barquinho de papel que ruma eternamente ao horizonte de um novo sonho.

* (Publicado originalmente no Jornal "O Democrático", em Dois Córregos-SP, em algum dia do ano de 1994)

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