A RUA (de 1993)
Certa noite, eu assistia a um filme daqueles assustadores, de dar medo de colocar os pés no chão depois de assisti-los. Chamava-se "A Rua", de um cineasta belga. No entanto, notei algo estranho: Minha televisão jamais havia sintonizado o canal dois, que naquele momento parecia ser o único das dezessete polegadas em preto e branco.
Na cena, havia um homem de chapéu chaplin caminhando pela rua escura, um homem vestido em negro e portando nas mãos uma caixa de sapatos onde se via escrito "Elisa". A princípio, imaginei Fernando Pessoa, mas a personagem se oscilava na imagem como se sumisse na penumbra. A rua estava aparentemente alagada, uma ladeira mais sem-fim que um dia sem-luz.
Pela televisão, eu conseguia ver, no canto esquerdo da tela, a lua e o sol juntos numa dança silenciosa. Ouvia os passos ritmados do homem como castanholas imitando ferraduras. Ele andava como se estivesse com muita pressa, como se perseguisse a própria sombra. E não olhava para a frente, mas para a calçada cheia de musgos entre as pedras.
De súbito, como se a noite se encolhesse numa caixa de luz, não vi mais a televisão, somente o homem como em sonho. Pela primeira vez na cena, vi outra personagem, que estava também vendo-o passar. Um sujeito na janela entreaberta não me era estranho, e ,por isso mesmo, causou-me calafrios. Percebi que minhas costas latejavam na poltrona da sala branca.
Ouvi passos ao longe, porém vindo na direção da minha casa. Na sala havia uma janela entreaberta sem cortinas. Era dia de São João e a meninada havia feito fogueira na rua, de forma que se podia ver vultos na parede atrás da estante. A luz do fogo miúdo fazia os mosquitos e pernilongos na janela parecerem monstros.
De instante, um vulto, um homem projetado em sombra na parede. Havia alguém passando defronte a casa! E os passos, rapidamente, distanciavam-se. A curiosidade preencheu-me de alma inteira. Fui à janela para ver quem era e, quando voltei os olhos, a televisão já havia sido desligada.
(Publicado originalmente no Jornal "O Democrático", de Dois Córregos-SP, em 1993)
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