Passei a noite em claro conversando com parentes que não via desde o último falecimento em família. Tios me apertando a bochecha, beijos de saudades em primos distantes.
Velório é o momento do sublime encontro para atualização dos obituários, identificação dos novos nascimentos, traições, mudanças de preferência sexual e doenças que potencialmente convidariam para um novo evento social deste porte em breve. Inconscientemente, sabemos que o ritual do desaparecimento dos outros irá nos convidar até que o nosso próprio nos convoque a não estarmos mais presentes.
Engraçado como é habitado pelas mesmas personagens. Desde os frequentadores assíduos, supostos evangelizadores, que nem conheciam o morto, até os parentes que nem chegam perto da sala onde está o corpo. Seria isso uma forma de não se contaminar com a morte alheia? Como escapar do conflito da felicidade ao reencontrar os queridos com pêsames nas palavras? Como evitar o pensamento que não se prolonga nas conclusões sem avançar na fé ou no desespero? Como concentrar nossa mente no café servido na madrugada se o açúcar anda escasso e prevalece o gosto amargo?
Passagens lúdicas e memórias dos feitos do morto são contadas para celebrar a sua vida. Falam-se da suposta fogosidade inata dos homens da família. Motivos de chistes e risos. Por instantes, nem se nota mais que se trata de um ambiente supostamente fúnebre. Mas ele neste instante participa da descida da cortina pelo lado de dentro do palco de si mesmo.
Muitos elogiaram os cabelos negros insurgentes que meu avô ainda possuía, seu rostinho liso, corpo esguio, o bigode bem feito e a falta de rugas. E diziam: como parece dormir, como parece estar feliz, como parece... vivo. Existe, nestes momentos, certa tentativa de reaproximá-lo da realidade, trazendo-o de volta. De volta para onde? Meu pai passava as mãos em seus cabelos e dizia que havia cuidado bem do vô, conforme a vó lhe havia pedido no leito de morte.
Num velório, faço parte daqueles que chegam num dia e passam a noite em claro, devotando ao falecido o tempo que não puderam dar em vida, como forma de purgação. Preciso ver a noite ser invadida pelos primeiros raios de sol. Esta é minha forma de acreditar em ressurreição. É preciso ver a luz vencer a escuridão, embora tudo isso no fundo seja mera ilusão de ótica.
Meu avô era orgulhoso, o velho não aceitava ajuda para caminhar. Trabalhou na roça até os 83 anos de idade. E agora estavam lá, 89 anos de história, por fim condensados naquela urna que o elegeu para a viagem sozinho. O pedreiro já o estava esperando para erguer-lhe a parede que lacraria sua gaveta ao som dos pássaros que só cantam em cemitérios.
Morreu tão discretamente quanto viveu. E esperou o fim de um jogo de futebol para não sair no intervalo. Em sua sabedoria, entendia quando o ciclo estava no fim, como o sol no horizonte decretando o fim do dia; era hora de recolher as enxadas. Os cafezais esperariam até o próximo amanhecer.
Muitas vezes opinou sobre a previsão do tempo, e acertava; conhecia a direção dos ventos e das suas pausas. É provavel que meu avô conhecesse para onde vão as nuvens que somem no céu. Havia algo mágico nas suas tragadas do cigarro de palha. E parecia que ele sempre fumava o mesmo. Na infância, eu fuçava suas gavetas para cheirar o fumo de corda. Jamais gostei de cigarro, mas aquelas gavetas cheias de palha e fumo exalavam perfume.
Eis o fim que segue para os vivos. Talvez a única alternativa seja entender o ciclo, a marcha do tempo, o tamanho que Deus possa ocupar neste vazio que sua ausência causaria. E assim, olhar o céu, ver o sol rasgando o mundo e se pondo além do meu alcance. Não há mais tempo. É hora de voltar à vida. É hora de recolher minhas enxadas também.
* imagem obitda em http://elmedio.com.uy/vostambien/juliofajardo/imag/otras%20obras%202-figurativo/carpidor.jpg
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Emerson Donizeti Batista. Tecnologia do Blogger.
15 comentários:
"Combater e morrer, é pela morte derrotar a morte, mas temer e morrer é fazer-lhe homenagem com um sopro servil." W. Shakespeare
Me identifiquei, em demasia, deveras e amiúde. Enfim, felicitações!
Emerson,
Vou me tornando, dia-a-dia, mais fã do que escreves! Tenho gostado muito de ler o que traz ao mundo através das palavras.
ADOREI este texto!
Um abraço,
Lila Marques.
Ah! Emerson, o que dizer de sua crônica???
É injusto qualquer comentário porque nenhuma palavra faria jus ao que sinto diante dos seus textos e, com mto privilégio, diante de sua postura nessas horas.
Meu querido, seu avô foi um homem como pouquíssimos, como seu pai também... vim do velório pensando o quanto soube escolher do pai dos meus filhos.
Lindo! Lindo de viver!!!
Como sempre né!
Após ler seu texto, fiquei por alguns segundos inerte diante do computador...pensando na sensibilidade necessária para descrever um sentimento, que por um egoísmo singelo, julgamos ser de nossa, e apenas nossa propiedade...eh muito bom qnd textos como o seu nos atentam, ao mostrar que nosso palco é tb povoado por pessoas que compartilham de sentimentos tão intimos, tão nossos.
Belo texto de elogio à vida na pessoa de quem a soube viver. Não a bebeu de um só trago, desfrutou dela como saboreava o seu cigarro de palha.
BELO! Seu avô estará orgulhoso do alto do seu cavalo alado, observando os inertes que não sabem viver.
PARABÉNS!!
(de ti,Em, só leio e espero delicadas palavras)Obrigada.
Li todos me identifiquei muito,barbaro!!
Parábens!!! TORNE-ME SUA FÃ.....
Impressionante como vc conseguiu captar a beleza que existe mesmo nestes momentos. A de relembrar os feitos de quem se vai com leveza e poesia, a alegria do reencontro que vc descreve tão bem e que em muitas familias só acontecem assim quando parte alguém.Na minha cabeça ficou a imagem linda do seu avô, de poucos cabelos brancos sentado a fumar seu cigarro de palha, num raro momento de descanso, a filosofar com tanta sabedoria sobre a vida.E tenho a certeza que guarda na tua memória e coração lindas lembranças.
Bom ter o privilégio de ler um texto assim que com simplicidade e delicadeza traduziu um momento seu tão íntimo, forte e dolorido em pura beleza.Posso acreditar que vc deve ter herdado essas qualidades que tanto elogia em seu avô. Boa semana pra vc.
Emerson.
Gostei demasiadamente de sua crônica. Quanto a mim, parece-me que seria um egoísmo sem tamanho lamentar a partida de alguém: prefiro crer que, com a morte, são colocados os devidos pontos nos is. Motivação escapista? Apontamentos banais em relação ao sofrimento alheio?
Não, acho que não. O que me importa é que não se fecha nunca uma existência com um ponto-final, mas com espaçadíssimas reticências.
Fica bem.
(E, não sendo pedir muito, persista na prosa. Tenho prazer imenso em lê-las.)
Gui
(Se bem que o "i" por si só é portador de um ponto como chapéu. O "i" sem ponto é, sei lá, um "l" com nanismo).
Gui
A vida nos contamina mais do que a morte, nas entrelinhas.
Oi, Emerson, tudo bem? Dei uma passada em seu twitter já que és o meu mais novo seguidor e acabei chegando até seu blog. Nossa! Simplesmente AMEI! Óbvio que não li tudo, mas o que li gostei muito. Parabéns! Voltarei mais vezes.Um abraço e boa terça!
É estranho o velório, entre todas as reuniões familiares, é a que mais agrega família e amigos.
Jefhcardoso do http://jefhcardoso.blogspot.com
passando por aqui também...
gostando demais..ficando por um pouco e te convidando pra me visitar também..
bjs.Sol
Agora, aqui é uma crônica. Muito boa, por sinal!
E você não é relapso. É o tempo que lhe rouba essa liberdade.
Beijos na Teia de textos.
Entre os rituais familiares em datas especiais como natais ou casamentos, o velório é sem duvida um momento ímpar de significações...
gostei do texto, vou recomendar ..
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