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Meu Livro Encantado

     Sempre que houvesse uma caixa fechada, uma gaveta emperrada, um quartinho escuro, deleitava-me a explorar os conteúdos em busca de miudezas e antiguidades. A ideia de que algo pudesse ter existido antes de mim, as inquietações por descobrir as origens das coisas, as naftalinas e bolores eram sentidos de longe como perfume de algo que estava em segredo na mente das coisas inanimadas.
     

     Como um ratinho que prefere os cantos escuros e quentes para manifestar seu prazer em fuçar, habitava em mim a fúria da inocência. Que perfume sedutor o cheiro de fumo de corda que recendia daquela gaveta do armário azul-desbotado! Alguém tinha que sentir e se apropriar destes segredos olfativos e visuais! Era preciso absorver tudo, mergulhar na correnteza do tempo e dissolver nas memórias dos outros. Sentia que era responsável por libertar essas comportas, verificar os vestígios e fontes. Mas como?
 

     Pois ocorreu algo importante naquele dia em que encontrei, dentro de uma gaveta, o livro desencapado e borrado de azul pela caneta estourada. Ele nunca foi um livro inteiro. E me identifiquei. Sua encadernação estava frouxa e descolada. Esfarelava a cola e as linhas que costuravam as brochuras arrebentavam facilmente, apodrecidas. Alguém havia tentado remontar o livro e as folhas estavam fora de ordem. Para piorar, algumas foram arrancadas. Mesmo assim, foi minha primeira leitura, minha primeira frustração, meu primeiro espanto.
 

     A princípio, fui seduzido pelos diálogos e desenhos coloridos numa tirinha em estilo de quadrinhos que nele estava. Algumas fontes e gravuras lembravam muito a cartilha Caminho Suave. E fui sendo seduzido a juntar mais que letras, palavras para que elas cortassem como o “f” da faca ou fizessem chorar, como o “c” da cebola. Nesta época, o “s” era de sapo, não de saudade.
 

     O livro pertencia à gaveta, definitivamente. Acho que deve ter surgido ali por magia. Eu sempre o devolvia à gaveta. Somente na próxima visita à casa dos meus avós daria sequência às reinações e anotações com minha letra que mais parecia rabisco. Devia ter sido um livro, quando inteiro, didático de literaturas brasileira e portuguesa. Poesias sortidas, crônicas, poesia concreta, davam o sabor inebriante àquele livro com cheiro de fumo de corda e gosto de mel.
 

     Um dia, não estava mais lá. Abri a gaveta e somente havia palhas para cigarro, peças avulsas de dominó, meias de sapato enroladas, maços de velas brancas, fósforos e pedaços do meu amigo de papel amarelecido.
- Vó, cadê meu livro?
- Que livro, fio?
 

     Desespero total! Ele era meu! Mas não podia reclamar, pois não me pertencia, como, aliás, nenhum livro pertence a ninguém. Percebi que nosso contato havia terminado e que o nosso segredo estava agora comigo, apenas. O mais engraçado é que não lembro o segredo. Não consigo lembrar os textos que li. Estavam fora de ordem e tentava reordená-los para entender. Parei o trabalho na metade. Aliás, como saber a metade de algo do qual não sabia o tamanho?
 

     Com seu desaparecimento, suas páginas estão para sempre dentro de mim, fora de ordem mesmo, e tenho apenas minha lembrança para recuperar ou criar o sentido que teriam. Os livros são assim mesmo; só existem enquanto abertos, ou despedaçados diante de alguém apaixonado. Fechados, são túmulos de palavras, ou gavetas cheirando a fumo de corda.
 

     Às vezes, sonho com poemas e figurinhas coloridas ilustrando bolhas de sabão soltas com caule de mamona. Outras vezes vem apenas o cheiro de fumo, a gaveta vazia, ou a mancha azul que me impedia de saber o que estava escrito direito. Mais e mais histórias e sentimentos passam a fazer parte do livro despedaçado. Precisam vir à tona para serem dissolvidas na correnteza do meu tempo, do tempo que me resta, ou do que me falta, ou do que me sobra. Fico imaginando se ele não fugiu para dentro de mim, sem eu saber, e agora me quer habitar nas palavras e nos silêncios.
 

     Reconheço trechos das minhas lembranças nos livros que leio, e nos que não lerei jamais. Meu desejo, minha paixão, meu amor pelas pessoas, meu horizonte é tentar remontar estes fragmentos que nunca existiram fora de mim. E foi tentando reconstruir estas memórias que me despedacei também. Meu amor é uma página arrancada que teimo em reescrever. Eu sou o livro que nunca mais voltará para a gaveta, que o protegeu por tanto tempo e que um dia o engoliu para dentro de mim.

* Crônica escrita em 15/07/2010, à noite, sem telefone, sem internet, sem televisão, no quarto 32 do hotel Santa Helena, algum lugar entre Três Rios e Juiz de Fora - MG.

Unknown

20 comentários:

Inez disse...

Sem palavras para elogiar o texto. Me levou a minha infância, quando ficava na bibliotca da escola ou da cidade, lendo os livros e tentando entender a vida. Hoje leio os livros tentando me entender, onde me perdi, onde merderam. Parabéns. Seu texto é mágico.

Teia de Textos disse...

Não sei o que dizer!
Estou sem fôlego e sem palavras... acho que é o melhor texto que já li em minha vida!
Um grande escritor, sem dúvidas! =]

Anônimo disse...

Nossa, Emerson, cara, que texto lindo!! Me fez viajar em minha infancia..
Janjan la do tweeter

Naiane Oliveira disse...

Oi Emerson, esse texto é simplismente lindo. Tenho acompanhado as frases que vc tem twittado... estás de parabéns. Tens um grande talento!!

Márcia Luz disse...

Realmente lindo! E faz a gente lembrar de tanta coisa! Tão bom o tempo em que "o “s” era de sapo, não de saudade". Mas... a gente cresce...

Ella Fachin disse...

Meu querido Emerson, seu texto é belíssimo e me deixou muito emocionada... Somos papel em branco em busca de histórias que colhemos pelos que passam por nossas vidas,são pessoas especiais, assim, como você!
Palmas!
Beijos da Ella...

Gabriela Marques de Omena disse...

Eu adoro ler, mas ainda acho mais gostoso poder comprá-los ou então ganhá-los, para poder tê-los comigo. Colocar o tal livro em minha estante e ficar observando mesmo depois de o ter devorado. Dá aquele gostinho de saudade, e se ele for bom, acabo lendo até duas vezes!

Unknown disse...

belíssimo texto..
realmente.. os quartos de hotéis nos inspiram muito..

Sol

Nanda disse...

Vir aqui é sempre certeza de um texto lindo, como esse, que me fez viajar, aqui, do outro lado da tela!

beijos

Teia de Textos disse...

Vim ler novamente! Sou fã do escritor que vc é. Muitas coisas podem mudar. Mas, seu talento é um fato. Não consequência do meu amor. =]

Anônimo disse...

vim Lêr seu texto de novo e derrepente parei para pensar,...
vc é como um livro,.a diferença é que muitas vezes os livros são esquecidos e muito poucas vezes lidos,..
mas vc eu gosto de lêr sempre,..e Lêr um ser humano é sentir sua essência,..e eu sinto sua essência,..
sua essência é a de alguém inteligente que sabe bem o que quer,.
é uma essência de uma pessoa que tem a cabeça no lugar,..
vc tem um lindo coração,.e seu coração quer liberar mais textos,.mais frases,.mais poemas,.siga em frente,..
deixa sua alma liberar seu ser,..e deixa seu coração enviar lindas mensagens ,lindos textos,...lindos poemas,..lindas hístórias,.
vc pode !!! basta querer...
devemos ser como um livro aberto,..não como um livro que tem um dono,..mas como um livro de palavras e frases encantadas que ao ser lido se sente como um livro de asas,..que então voa de mão em mão e que a partir de suas palavras e frases tão mágicas vai tocando coração por coração...

por hoje é isso que vim expressar..
nem sei se vc vai me entender,..
mas postei o que meu coração quiz escrever...bjss
ASS: Elienai Oliveira..

anja disse...

Estou aqui me deliciando com teu blog.
Encantada!

O livro encantado nao me sai da cabeça....acho que tb fui engulida.

:)

Teia de Textos disse...

Mor, adorei o tradutor que vc colocou! Vou ler seus textos em francês e em inglês... assim tenho vontade de estudar!
bjoss

Vampira Dea disse...

Fui no passado e rememorei com o texto aventuras parecidas que já fiz.Me emocionei de verdade. Que bom que vc já entendeu que ele não desapareceu e sim que está dentro de vc. Acho que essa crônica é o que mais lindo já li de vc. Parabéns.

Unknown disse...

O inicio deste texto me remeteu a infância, onde para mim tudo era mágico e o faz de conta tornava tudo tão importante e humanamente bom, mesmo que inanimado.

meu abraço.
@cogumela_

Maria Maria disse...

Obrigada pela visita ao Água de Chocalho, viu?
Tem mais coisas lá.

Beijos e, se possível, espalhe a água entre seus amigos, sim?

Maria Maria

Maíra disse...

Se todas as pessoas tivessem esta sua mesma paixão pela aventura de ler, o mundo seria bem melhor!

Que lindo textoo! =)

Maçao Filho [Delos] disse...

Já há algum eu não passava por aqui e teu texto me lembrou do motivo pelo qual é um crime deixar de vir conferir teus escritos.

Tens um jeito de escrever tão cativante que não encontro um jogo de palavras capaz de descrevê-lo.

Deixo então apenas meus mais sinceros parabéns e muito obrigado - por compartilhar teu escrever sempre encantador com tanta gente que, como eu, não vê a hora de poder apreciar outro texto teu, outra chance de viajarmos pra dentro de nós mesmos através de palavras tuas. Um abraço, çao.

Jeferson Cardoso disse...

Grande texto! Fui levado à infância longínqua, em que a leitura dava asas à fantasia e os personagens ganhavam vida.
Jefhcardoso do
http://jefhcardoso.blogspot.com

Patrícia Garbuio disse...

Texto maravilhoso,rico em detalhes.Como todo mundo,me fez lembrar da infância,amava ler livros de todo jeito.E quando passava férias com minha vó eles iam junto comigo.
Parabéns!bjsss

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