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Fotos


Sentaram-se no sofá da sala diante da maletinha empoeirada repleta de recordações. Chegara o momento de separar também as fotos. Estava tudo misturado ali; momentos que foram testemunhados por flashes a iluminar o futuro do qual agora duvidavam; instantes mágicos e olhares ingênuos. Mas chegara o fim e era necessário cada um levar consigo apenas a própria lembrança, sua herança. Era necessário acreditar que era possível voltar no tempo e recomeçar seus álbuns a sós.

Quando se conheceram, cada um trouxe seus álbuns. Depois começaram as fotos dos momentos juntos, de modo que parecia que os caminhos haviam corrido em paralelo apenas até se encontrarem e de onde fluiriam juntos como um rio cuja correnteza não agride as margens. E de juntarem seus álbuns, de tempos em tempos celebravam e rememoravam sua história revendo foto a foto, rindo ou detalhando seu contexto. Apresentavam amigos um do outro que só conheceram por imagem, cada um com sua história engraçada para não esquecer. As infâncias dos dois agora se misturavam, as fotos estavam juntas, os aniversários, as festas juninas, os momentos que não haviam compartilhado na convivência e que corrigiam no embaralhar de fotos amarelecidas. Vidas de famílias inteiras historicamente amalgamadas em registros fugazes que agora precisavam ser revisitados.

Não eram poucas as fotos, tiradas por diversas gerações de máquinas fotográficas, algumas emprestadas. Houve evolução nas cores, nos focos, na habilidade dos fotógrafos. Desde as fotos da infância, em preto e branco, tiradas no único estúdio da cidade, as fotos em sépia, as fotos coloridas posteriormente. Havia também ao lado dos avós, agora já falecidos, todas elas em tom de despedida, sorrindo diante do orgulho familiar. Como voltar àquele momento e dizer para eles que agora a história iria mudar de novo para sempre? Até fotos de parentes distantes, herdadas de outros álbuns tinham seu lugar. Estava tudo ali, entrelaçado: a juventude e o sorriso de quem desconhece o porvir como o orvalho da manhã desconhece o calor do dia que lhe evapora.

E a dúvida permanecia. Esta foto fica com você ou comigo? Fotos da sua infância voltam para você, da minha, ficam comigo, fotos juntos, jogamos fora, fotos juntos com parentes, recortamos e cada um fica com o seu. Ele queria fotos da infância dela, e ela algumas dele. Gerou certo impasse. Que tal fazer uma cópia e cada um fica com a foto completa? Boa ideia. Mas como olhar para alguém que se quer esquecer para evitar maiores sofrimentos? Como guardar fotos sorrindo se hoje se sabe que não foi amor eterno, que não foi a morte que os separou?

Passaram a noite revendo tudo, classificando, dividindo, estranhando cada momento feliz contrastado com o desgaste insolúvel do melancólico fim. Até as fotos no computador foram catalogadas. E de tantas fotos que foram vistas, cansaram-se, enroscando as pernas, encostando os ombros. Pediam-se ajuda para lembrar de que data era uma foto ou outra. Ela passou a espirrar com o tanto de poeira consumida. Ele ofereceu um copo d´água e foi à cozinha buscar. Trouxe. Continuaram o trabalho até adormecerem amontoados. 


Amanheceu. Surgem na sala os filhos.


- Paaaaaaaaai, olha aqui! Tiramos fotos de vocês dois dormindo aí, venham ver!

Unknown

9 comentários:

Teia de Textos disse...

As fotos eternizam momentos. Palavras eternizam emoções.
Mais cruel que dividir fotos é ter as emoções divididas. Aí não há caminho possível que conduza à felicidade.
Tudo nessa vida é um eterno por enquanto, disse-me uma vez o poeta.
Lindo texto. Como sempre.

G Sandi disse...

Mais interessante que as fotos que são reveladas, impressas, exteriorizadas na concretude, são as fotos capturadas por nosso senso visual, que não são impressas senão na aniquilante profundidade de nossas almas.

Abração!

Nanda disse...

Estou ficando cada vez mais encantada com as coisas que escreve, são sutis e ao mesmo tempo intensas, revestidas de verdade e realidade...

Beijo!

p.s. Lindo o comentário da G Sandi, sobre as fotos que a memória tira.

Aline Leitão disse...

Você conseguiu traduzir parte de um momento meu de uma forma tão sublime.
Acho que todos os textos do seu blog que tenho lido, com certeza esse foi o mais tocante, o mais intenso.

Parabéns pelo dom da palavra.
um beijo (:

Vampira Dea disse...

Sabe depois que as velhas máquinas foram substituídas por máquinas digitais as fotos perderam um pouco do seu encanto. É uma delicia sentar e voltar no tempo,com fotos amareladas,pretas e brancas ou aquelas coloridas que ganham aquele lindo tom róseo.Poder compartilhar sorrisos que não existem mais ou crianças brincado que já esqueceram o quanto é bom sorrir. Obrigada pelo texto, por compartilhar, belos presentes vc tem dado a quem te visita.Uma boa semana.

Otávio M. Silva disse...

oi, estou passando para comprimentar-lhe pelo seu texto, ficou muito bom mesmo, e convidar-lhe para passar nomeu espaço http://otaviomsilva.blogspot.com/ , será um prazer ter você por lá. Obrigado pela atenção e parabéns novamente.

Anônimo disse...

Ah, LINDO DEMAIS!! Emocionei-me!
Excelente texto!

Rosângela Monnerat disse...

"-Que "cocês" dois tão fazendo aí, misturados que nem tinta?..."
disse uma vez uma criança querida, que hoje é mulher feita e mãe, aos seus pais, ao surpreendê-los amontoados.
Seu texto finaliza o encontro com o passado desta forma.
Com tudo misturado que nem tinta,
fazendo amontoado de amor.
Bj!

Anônimo disse...

Ah, que belo e triste... Quem passou por isso, mesmo sem filhos, bem o sabe... Mas o tempero mais amargo é justamente o final: os filhos, que são unidades inseparáveis; fruto da fusão de dois seres. Maravilhoso te ler.
Abraços.

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