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Nenhum Paraíso?

 A agonia não tem perfume, é uma flor de plástico. Sempre mantive certa distância daqueles que eu acreditava estarem à beira do fim. Não queria me sentir, nem de longe, próximo daquele momento. Depois do inevitável acontecido, defendia a grande ceifadora com argumentos de que havia chegado a hora, enfim, e que todos teríamos a nossa vez.
A morte sempre possui advogados de defesa e atenuantes. Se alguém era velho, chegou seu momento; se era jovem, Deus o quis com ele assim; se foi num desastre natural, foi uma fatalidade; se era bêbado, evaporou no álcool; se fumou, foi tragado pelo vício; se se suicidou, foi covarde. Sempre há algum detalhe que supostamente causa o fato. Assim, morrer sempre exige uma explicação estúpida que acalme os que ficam. Por mais coerente que seja, cumpre apenas a função de anestésico social e psicológico.
Conforme os anos vão se passando e vou envelhecendo, mais contemporâneos meus pegam suas malas. Passou a ficar muito difícil manter a velha distância protetora de outrora. Cortar volta do estranho agonizante nem sempre é possível. Amigos e parentes estão na fila também. Alguns à minha frente, outros atrás.
Já segurei mãos firmes com olhos suplicantes tentando se prender à vida, pedindo que eu rezasse pela cura. Senti que sua retina me fotografava como últimos registros de uma viagem longa que teria nova etapa. Já segurei mãos quentes e fracas deixando-se levar pela correnteza de cansaço da vida esperando algum céu. A morte é a transformação do vivente em invólucro inerte de uma borboleta que já voou.
Ficam as lembranças das conversas que tive com a pessoa. Essas ganham asas, cores e saem em revoada para dentro de mim. A impossibilidade de repetir o diálogo o torna eterno. De alguma forma, essas lembranças me deixam sintonizado com essa pessoa em qualquer estado mental, espiritual ou energético, para além do colapso das células corporais. Estas conversas que recordo existem como tesouro que possui dois donos e fiquei incumbido de cuidar. Não deixa de ser mais um estúpido lenitivo para a dor que desejo evitar, porém permite que eu sobreviva navegando as memórias.
Aconteceu pouco tempo atrás, em meio a divagações sobre mundo espiritual, vida e morte. Alguém que amei, e com quem conversava e ria muito, pediu que, se um dia ela falecesse, eu cantasse “Imagine”, do John Lennon, em seu enterro. A punição, caso não cumprisse, era ter meus pés puxados à noite. Propus, então, um trato. Aceitei o desafio com a condição irônica de que ela nunca morresse. Cada um cumpriria sua parte no trato. Rimos muito na hora.
A sem graça, inesperadamente, não cumpriu sua parte e restou-me cumprir a minha. É interessante a música “Imagine” começar pedindo que “imagine que não há nenhum paraíso”. Afinal, será que pode haver outras realidades que fogem dos nossos modelos? Será que então ela despertou de um sonho do qual fui personagem? Pois bem, fechei os olhos, cantei para ela e tentei não imaginar que nada mais havia ali, nenhum paraíso que aprisionasse almas, mas que as libertasse.
Assim, mudou bastante minha relação com a “indesejada das gentes”, como diria Manuel Bandeira. No dia seguinte ao sepultamento, conversando com meus amigos que também estavam abalados pela perda, tomei coragem de tentar me consolar, explicando:
 - Gente, ela continua viva, só que não está mais presa ao corpo, ela está livre.
             Enquanto eu pronunciava a palavra “livre” a luz do quarto apagou sozinha, devido a algum mau contato do interruptor. Arrepiei-me na hora. Isso pode ter significado muita coisa, inclusive nada. Porém, neste caso escolhi acreditar que havia sido feito um contato, uma epifania para demonstrar que de fato, como diria Guimarães Rosa, a gente “não morre, fica encantado”. No caso, até arrisca umas interferências na rede elétrica para que fique todo mundo ligado na vida, enquanto a fila não anda.

Unknown

12 comentários:

Daniella Caruso disse...

Muito bacana! A experiência da morte pra mim, que já perdi uma irmã querida, recentemente, não foi muito agradável; ainda cho que ela não merecia. Ou será que n[os é que merecemos estarmos vivos ainda? Obrigada, belo texto. Abços.

Teia de Textos disse...

E Monteiro Lobato dizia que as pessoas não morrem, viram hipótese. Sabe, aquele sinal me fez sentir mais saudade. A derradeira morada recebeu mais flores hoje. Não consigo ficar longe de lá muito tempo. Eu, que tantas vezes levei flores para ela em vida, continuo levando agora...
Belo texto...

Unknown disse...

Lindo texto! Me fez refletir sobre recentes experiências passadas com parentes próximos. De fato, sempre buscamos justificativas para nos consolarmos/conformamos com o ocorrido, não importa a idade do "escolhido". Sua reflexão fez muito sentido pra mim. Agradeço por compartilhá-la. Abraços.

Gui disse...

Pois digo a você, meu grande amigo. Se você morrer antes de mim, lanço um livro de sua autoria chamado OBRA COMPLETA.
(Fora isso, e para não ficarmos apenas nos lançamentos literários póstumos, estou fazendo nova seleção daqueles sonetos empoeirados de 2006 para montarmos nosso livreto de poesia).
Ademais, Adélia mais vive, pois mais eterna!
E se fizeram um trato e ela logo disse que se você não cantasse Imagine ela viria puxar seus pés durante à noite, bem, a luz cintilando certamente deu conta de agradecer a canção em sua homenagem!... ;)
Um grande abraço!
Gui
ps1: vamos marcar algo, sim?
ps2: seus textos são sempre muito fascinantes!

Rosângela Monnerat disse...

Hesitante palavra. Não sabia por onde começar.
Não queria conversar sobre o que já era. Talvez falar do que seria. Do que poderia vir a ser.
Não sabia dizer, entretanto.
Tudo viria depois. E se depois fosse dado a saber alguma coisa, assim mesmo não poderia contar.
Tanto mistério, de onde será?
Somos tão impossíveis sem esta razão...
E aí especulamos sem a medida certa. Só temos o tempo, não a eternidade. Esta é para depois.
Até quando?...
Não tenho coragem de ir além. Só vou até quando durar. Até agora.
A morte não tem história, só ficção.
No dia em que a gente a conhece acaba a ilusão, e tudo que era destino, pra sempre, não existe mais. Agora, não existe nunca mais.
Então, fica assim. A vida com esta interrogação.
Que vi como uma foice curvada pelo tempo, sustentada por um pingo de dúvida.
Um ponto final que não pode ser.
Até mais.
Lamento por Adélia.

Muriel disse...

"-Gente, ela continua viva, só que não está mais presa ao corpo, ela está livre."

O seu comentário explica muito bem o que é transcender a vida dos mortais: receber a liberdade para viver muito além do que os olhos podem ver.

Lindo texto. Parabéns.

Cuentos Bajo Pedido ¿Y tu nieve de qué la quieres? disse...

goste muito de sua escrito!

Anônimo disse...

"Assim, morrer sempre exige uma explicação estúpida que acalme os que ficam". Adorei.

Cabala a parada da luz...

Amei o texto, belo e triste.

Que Deus dê forças a vocês.

Anônimo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

Que dizer depois desse texto se não de que a morte é só isso mesmo: o que eu pensar que ela é? De fato, não foge de nós um outro pensamento se não aquele que nos sucumbe a nos aperfeiçoarmo-nos numa distração séria do que acontece dentro de nós em momentos ruins.

Eu - prefiro - e não consigo mais ver de outra forma se não de que a vida tem seu inexplorável fim no melhor momento em que podia lhe caber: no fim.

A morte me alivia, e não é com nenhuma autoproteção ou defesa própria que digo isso. Pensar que isso aqui acaba... é estarrecedor. Me dá um certo ânimo acordar e saber que um dia... não haverá noite. Outra noite. Outra noite. Outra noite. Porque... outra noite.

Posso mudar completamente o que disse. As palavras se alteram. A morte não - virá.

Adoro você, poeta! Seus textos, acredite, me são oxigênio.

Lê Fernands disse...

B R A V O!!!

as explicações surgem porque a gente precisa de um alento... pra preencher a larga e profunda lacuna.


adorei o texto.
abçs.

Priscila Dal Bosco disse...

Emocionante. Excelente surpresa conhecer seu blog.
Abraço grande!

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