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Cair para Cima


Como num quadro denso, seduzindo o olhar, consciência é esse eu que fica sentado atrás da retina, assistindo o que vejo. Uma imagem 3D, sempre com um nariz no meio, às vezes, através dos óculos. Sorte de quem tem nariz pequeno, pois o meu sempre atrapalha os cantos das imagens. Ver o mundo sempre foi uma experiência estranha para mim. Às vezes, oscilava o pensamento entre tempos verbais: o futuro do pretérito e o futuro do presente. Todos os tempos verbais são imperfeitos. O Tempo nos quer indefesos. Por isso, o adiamento é a ilusão de que o tempo age por nós.

Nas crises de pânico da adolescência, o sintoma comum era perder noção do peso do meu corpo, ficar como que flutuando ao vento e me restringir à experiência de ouvir a própria respiração e filmar os lugares pelos quais ia passando, pintando o quadro na minha paisagem interior. A minha voz parecia que não saía de mim, e sim de uma caixa de som em algum lugar indeterminado. O pânico era o medo da morte, e para ela eu deveria estar preparado.

Sempre me inquietei para entender o que é estar vivo. Primeiramente, busquei a solução religiosa que me levou a um seminário por dois anos. Além dos ritos e conhecimentos bíblicos, lá dentro, quando estudei superficialmente Kierkegaard, Nietzsche e Sartre um mundo novo e desencantado saltou aos meus olhos. De repente, a divisão entre mundo, céu e inferno entrou em colapso no meu Apocalipse. Era necessário me situar na existência sem recorrer a fórmulas prontas ou alucinógenas. Com o tempo, fui vendo que a gente nunca perde o vício, só vai mudando de droga. E de tanto abstrair meu espanto, muitas vezes me pego ainda rezando antes de dormir por medo de não acordar no dia seguinte. Aliás, nem seria possível acordar morto. No máximo, chegaria ao fim do sonho sem saber o final.

Certa vez, eu caminhava por um descampado repleto de capim barba-de-bode após uma geada. A ventania dobrava os feixes e os retorcia como ondas em um lago revoltoso. Dava a impressão de um oceano amarelecido feito só de areia. Como nunca tinha visto um campo de trigo, também servia para dar algum glamour tal semelhança. E pensava: “Que sensação deliciosa!” Era um cheio-vazio. Cercado pela ventania, eu me sentia caminhando sobre as águas, sobre o vento. Foram tantos momentos em que precisei ter os pés no chão que sentia necessidade de voar, ainda que nas asas do vento.

Zaaaaaaaaaaaaaap! Caio para cima. Agora, de olhos abertos, revivo as cenas. Estou na minha tempestade de vento novamente em meio ao capinzal de barba-de-bode. Corro para o horizonte, o sol foge e o capim chicoteia minhas pernas. Estou envolvido num redemoinho que me puxa o pensamento às alturas das nuvens. O peso do meu corpo é menor do que o dos meus pensamentos. Lembro-me das pessoas que amei na vida, estão todas comigo, são tudo o que levarei daqui. Aliás, o tempo não volta, ele é correnteza, só se entrega para o oceano.  

Unknown

4 comentários:

Anônimo disse...

Simplesmente fabuloso! certo é que ainda somos viciados, o que muda é a nossa droga!! E quanto ao céu, inferno, acho eu que os temos dentro de nós mesmos. Parabéns!

Anônimo disse...

O tempo como rio, o movimento da vida, o presente ser apenas o passado derramado e o futuro se costurando, isso tudo me lembra Borges, meu caro amigo escritor, pessoa da alma.
Que a escrita te liberte sempre, do que não quer levar consigo: a dor.
Parafraseando U2, entretanto, LOVE is all that you can't leave behind.

Um abraço da irmãzinha.

Rosângela Monnerat disse...

Quase sempre me vejo através das suas lentes. Talvez porque tenham a farta habilidade de se adaptarem ao bom-senso, apesar do contrassenso da moda.
Suas lentes se ajustam aos temas como faria um camaleão ao seu em torno.
Não acho que seja fácil ver a vida com nitidez. E muito menos, considerar a morte.
Agora há pouco li, do Marcelo Soriano, que ele sentia informar que a Terra continua chata.
Então, este nosso jeito de olhar ,que não é cômodo, segue calçado na profundidade.
A gente vai é caindo em cima mesmo, que "para cima", é faceta de anjo. De gente que parece tão leve, que levita. De gente que mergulha e volta, com precisão.
Assim, meu amigo, desta vez não consigo lhe acompanhar.
Vou seguindo no meu caminhar viciado em pedra, poluição, e paixão, que estranhamente reúne até mesmo algumas das coisas em que tropeço.
Um dia a pedra é dura. Noutro dia é miolo de pão.
Assim, como em João e Maria, sigo insistindo em encontrar o caminho de volta para o meu perdido lar.
Às vezes, romântica ou ingenuamente perdendo lugar.
Quando não, conto com guias para me ajudar, quase sempre.
Alguns aparecem como anjos, e "caem para cima", suspendendo a minha dor temporária.
Fico grata à você, que desde a primeira aparição na minha timeline no Twitter, vem me trazendo este seu "jeito suspensório" de guiar e guiar-se.
Bj! E parabéns mais uma vez!

Sonia disse...

O mundo tem a cor da lente de nossos olhos.Vejo o mundo azul!!Todos temos uma lente imaginária,nossa percepção da vida, assim seguimos em nossas crenças e cores que pintamos em nosso caminho. Adoro suas postagem,hoje decide comentar. Deus te ilumine sempre e sempre. Beijo e Parabéns!

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