Pages

Uma Vida a Lápis


Corre tinta nas minhas veias, por isso desenho meus sonhos no ar.

Tentava disfarçar o nervosismo manuseando o material escolar. O cheiro do caderno recém-encapado misturava novidade, angústia e amarelo-canário. Não notava nenhuma diferença entre as doze cores dos lápis; tinham cheiro de arco-íris. Lançava o olhar enviesado aos colegas que ostentavam caixas de 24 ou até 36 cores. Mas esse momento durou até ser interrompido:

 - Classe! Atenção! A partir deste ano vocês começarão a copiar a matéria da lousa com a caneta esferográfica azul. Se errarem, coloquem entre parênteses, façam um risco e continuem o texto. As provas também deverão ser respondidas a caneta. Entendido?

Depois de mais algumas instruções, e minha dúvida sobre para que afinal serviam os parênteses, virou-se para o quadro negro, que de fato era verde, e sumiu da minha memória.

Ansioso, empunhei minha espada para duelar em azul escuro com o espaço em branco. A partir daquele instante, não mais o lápis de grafite que se permitia arrependimentos, agora a caneta gritava minhas palavras como tatuagens no caderno. Apagar lápis colorido já não era possível, mas agora cada resposta decretava sua forma absoluta e definitiva. Esferograficamente, frases marchariam obstinadas em busca dos pontos finais sem tropeções. Logo nas primeiras palavras, percebi: tinham cheiro de tempo.

Também logo nas primeiras linhas, um erro. Na verdade, vários. Não, nada de backspace. Pensa que era fácil assim? E de nada adiantava molhar a ponta da borracha com saliva; no máximo, furava a folha do caderno e evidenciava o erro. Com um pouco menos de sorte, afetaria até a folha de baixo.

Inocente vingador, o lápis-borracha era o candidato a me salvar, mas parecia um jagunço vestindo armadura medieval: nunca chegava a ser usado, tamanha sua ineficiência na tentativa de apagar o que a caneta escrevia. Borrava mais ainda! Às vezes, eu usava o apontador no coitado para renovar suas pontas intactas, ou seria o seu orgulho?

Clandestinamente, obtive um frasco de uma droga chamada “líquido corretor”. Inutilmente, aquilo só pintava de branco meus erros e me tonteava pelo cheiro de solvente. Emoldurava e dava brilho ao que se pretendia esconder. Quanto maior o trecho a apagar, mais compensava jogar fora a folha inteira. Fui me desesperando e vendo que nada me restava a não ser deixar de errar, ou então deixar de tentar corrigir. Obviamente, nestes casos, pequenos enganos negligenciados receberiam o colorido de tinta vermelha da correção da professora. Algumas vezes, dava para se notar que eram corrigidos às pressas, dada a presença de giz na folha almaço devolvida.

Após jogar muitas folhas fora, notei que era preciso escrever com a caneta pensando que fosse lápis; era preciso pensar em preto e branco para lembrar a cores.  Mas, entre uma coisa e outra, sempre vinha o coração e borrava tudo de novo. 

De lá para cá, só escrevo poemas a lápis. Faço pequenas anotações a tinta: telefones, lembretes, endereços. Depois de muitos anos, percebi que a caneta no caderno tende a borrar sozinha, o lápis a se apagar sozinho, a folha a amarelecer. Ou seja, o que existe definha, dentro ou fora de nós. O que parecia definitivo se encanta pelo efêmero. Aliás, que tempo estranho é esse que não vai amarelecer nossos e-mails como fez com nossas cartas de amor?

Unknown

14 comentários:

Anônimo disse...

Meu irmão, as coisas que você escreve me lembram as conversas no sofá com a minha avó e o primeiro dia de aula: uma mistura de preguiça com alegria.

Obrigada por isso.

O que parecia definitivo se encanta pelo efêmero. A aula passou, a vovó também. Que bom que você ficou pra me contar.

Vampira Dea disse...

Lendo o texto voltei no tempo, me vi pequenina começando a terceira série e sendo apartada dos meus amigos lápis, para mim não foi uma passagem tranquila e me rendeu muito choro e trabalhos perdidos, tendo quer ser refeitos, a minha sorte é que pelo menos nas aulas de desenho e de matemática ainda deixavam um pequeno reencontro.
Obrigada poeta vc sabe traduzir as coisas simples da vida.

Rosângela Monnerat disse...

..."Esferograficamente, frases marchariam obstinadas em busca dos pontos finais sem tropeções. Logo nas primeiras palavras, percebi: tinham cheiro de tempo."...
O tempo que não sabe recordar tudo, quando enclausurado em uma vida só, é capaz de retornar inteiro numa cena que se projetou pelos demais. Neste caso, um poeta, profundamente atento à vida em sua simples complexidade humana.
Adorei ser sua parceira nestes tempos vindos da memória.
Lindo e sensível texto. Invariável talento do seu coração. Sempre.

______________________________
Que bom que você exista na minha leitura!
Bj!
Inté mais!

Paula Izabela disse...

Nossa, q profundo...
Sempre tive pena dos meus alunos - qdo eu dava aula p os pequenos - por conta dessas transições. Um dia só podem escrever de lápis, no ano seguinte só de caneta. Sempre fui adepta de pequenas mudanças, q creio, são as mais duradouras.
Lindo seu texto. Parabéns!

Anônimo disse...

O que mais se pode dizer de seus textos? Eles nos fazem viajar para dentro de nós mesmos de uma forma tão simples... Lindo! Adorei! Parabéns mais uma vez poeta! Como disse a nossa amiga Andressa, que bom que você existe para nos contar... que bom que você existe!

Teia de Textos disse...

Acho que é um dos seus melhores textos. Vc sabe que nem é preciso comentar. Vc escreve bem. Ponto. Mas, é gostoso ler e reler suas coisas. No fundo, qdo venho aqui, é como se eu abrisse novamente a mala azul e de lá pulassem seus mais incríveis textos.
Parabéns.

apaixao-desconceito disse...

Simplesmente me conduziu, no tempo para as meninices e suas saudáveis e saudosas expectativas. Gracioso.
AP

Bruna Lorena disse...

Nao estou com tempo de ler no momento mas vou lhe seguir e ler direitinho depois.

Confere ai
http://www.livreparaexpressar.blogspot.com/

Poeta da Colina disse...

Que tempo é esse? Racionalizamos demais essa vida, na busca de um eterno, que não somos.

Darla Medeiros disse...

Perfeita formulação de ideias e transposição em palavras bem combinadas...

Anônimo disse...

Estou encantado com tamanha criatividade e simplicidade ao mesmo tempo, essa é a minha primeira visita de muitas! Parabéns!

Bazófias e Discrepâncias de um certo diverso disse...

Muito legal, Emerson! o seu texto me fez remeter aos tempos de escola, precisamente do quarto para o quinto ano. Foi como um ritual, as professoras diziam que "havíamos crescido". Ué, mas eu pensava: só passamos um período de férias fora, já devemos crescer? Levou um tempo para me adaptar a esse mundo enfadonho da caneta. Mas tudo passou. Belo texto! abs

Anônimo disse...

Sempre simplesmente emocionante! Obrigada...fez o cheiro de saudade nascer nas minhas narinas..rs rs rs...e o colorido esbanjar tinta no coração! Fã de carteirinha, quando eu crescer espero chegar nesse patamar!

Unknown disse...

Oi, se vi direito, você é de Dois Corregos? Já visitei sua cidade. Da uma olhada no http://nossasviagenspelobrasil.blogspot.com/ e deixe suas dicas também, ok?
Estou seguindo o blog também

Instagram