Florescem as Jabuticabas
Lembro-me que havia uma jabuticabeira bem na janela do meu quarto. Não fui eu que a plantei. Mas todo ano era festa: vinham as flores, depois forrava das jabuticabas mais doces que eu e os passarinhos disputávamos. Subia até no alto para colher as docinhas. Era casa alugada. Quando meus pais se mudaram de lá, a jabuticabeira ficou.
A vida e a morte são imagens em busca de suas metáforas perfeitas. Inútil tentativa achar solução; resta-nos tentar poetizar, falar de flores, rios correntes e do tempo inexplicavelmente mágico em que nossa janela para o mundo está aberta. Às vezes, não tão aberta, mas ainda se pode sentir calor do sol lá fora, ou se imaginar as estrelas: é só fechar os olhos.
A estranha percepção de sentir-se é a sanfona no peito inflando e desinflando, a percussão quase silenciosa no tórax, e esse auto-olhar que consegue ver a ponta do próprio nariz; um roteiro sem cortes do filme da nossa existência que está sequenciado até o sumidouro escuro ou cheio de luz.
Nunca fui sábio para compreender nem a vida nem a morte. Tive, na adolescência, o que hoje se dá nome de síndrome do pânico: atualmente, ficou chique o pavor da finitude. Enfim, sempre achei um vácuo estranho o tempo antes de meu nascimento, e também o tempo que não me acontecerá depois daquilo que você sabe o quê, mas, como dizia minha avó: "Vira essa boca para lá". Três toques na madeira. Quero a bênção da velhice plena, da folha seca que o vento precisa levar até que o peso das minhas pálpebras me convidem ao sono.
Perdi, sem adeus, alguns amigos recentemente. E se você parar para pensar, tudo na vida pode ser definido como recentemente. Depende da crueldade da sua memória. Sentimo-nos traídos e abandonados pelo destino, por nada dizer naquele último contato no posto de gasolina, aquela última conversa ao telefone, aquela piada conhecida e sem graça da qual se riu para celebrar o ócio, aquele sorriso trocado ao final da canção.
E não há saída fácil. O que passou, passou. É pensamento, é passamento. A fé na eternidade ajuda, mas não elimina a incerteza do agora. Quando a gente sobe na cruz, vai se sentir abandonado e pedir socorro para Deus. Deve ser como pegar a fila da montanha-russa e não ter como desistir. Quando o treco desembestar na descida, o grito é certo.
Não me lembro de ter fechado a janela do meu quarto para a jabuticabeira. Semana passada, por curiosidade, passei pela velha casa. Mais de vinte anos depois. Não havia mais nada. Mas quando eu fecho os olhos, eu abro a janela.
Unknown
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Emerson Donizeti Batista. Tecnologia do Blogger.
5 comentários:
lindo, isso me lembro que eu amei uma jabuticabeira que me traiu quando achei um verme em uma das jabuticabas, então todas elas se tornaram traiçoeiras aos meus olhos. acho que superei um pouco um trauma com a forma linda qe vc contou da sua jabuticabeira
A verdade é que as janelas nunca fecham, nós que muitas vezes perdemos o olhar.
Li uma vez que o passado é a única paisagem concreta que temos. Por isso jaboticabeiras e paineiras são atemporais, quase eternas. Belo texto.
Olá, Emerson, tudo bem? Lindo texto. Adoro jabuticabas e lembro que comia um monte quando criança na jabuticabeira de uma tia. Agora, para matar a saudade, como no pé de jabuticaba do parque! Estou querendo falar com você e sei que você não lê mais DMs e nem te achei no facebook. Queria te perguntar se você já publicou na Amazon e no Clube de Autores. É ótimo. Me passe uma DM lá no Twitter, ou deixe um recado no meu blog, se desejar. Um grande abraço!
Emerson parabéns nessa data querida muitas felicidades muitos anos de vida. Que deus te abençoe
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