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Aqueles Olhos

Todo vazio cabe no silêncio.  E muitas vezes podemos esquecer de pensar sobre isso e permanecer dentro dos dois. 

(É meio auto-análise isso aqui, mas é honesto.) 

Confesso que alimentava alguma pretensão a respeito de minhas possibilidades na vida e, de certa forma, isso dava contornos romanceados aos meus pequenos grandes feitos: vencedor de um festival de calouros de 28 anos atrás, um prêmio literário há 17 anos, um gol de bicicleta no campinho da vila e, quando eu escolhesse, poderia jogar futebol, ganhar a vida cantando ou virar um grande escritor. Mas o tempo não é um rio que passa, é uma cachoeira que despenca sobre nossas cabeças; turva-nos os olhos diante do frescor do sentir-se nela. É quase uma preguiça onírica a nos desfiar os anos.

Esquece-se de tudo nesta vida, de como se era, de como se foi, e assim, quando se vê, já se viu a última cena projetada na retina.

Mas não quero falar de mim. Isto é um auto-pensamento acidental. Desde minha estreia neste mundo, recepcionado por fórceps, hematomas e expectativas, tive em minha mãe uma parceira de estreia cuja importância em alguns momentos subestimei. É fato que jamais a desrespeitei, mas via sua simplicidade como obstáculo à nossa ligação umbilical. Engano tosco que por sorte resolvi.

Quantas vezes ri por dentro quando ela me falava alguma coisa cheia de verbos novos que faziam todo sentido. Alegremente, invertida o nome dos filhos. Criava nomes novos misturando, assim não errava mais. Nomeava objetos de "coisa", assim como as pessoas desconhecidas de "seu coiso" e a "dona coisa". Sua sinceridade deixava em maus lençóis pequenas e grandes hipocrisias. Certa vez, uma conhecida lhe perguntara se o regime feito estava surtindo efeito, já que perdera muitos quilos. Dona Neusa lhe sapecou: "Olha, filha, você ainda tá bem gordinha, viu".

Tive o privilégio de nascer primeiro e conviver com minha mãe adolescente, que tinha cabelos loiros até a cintura e olhos azuis que nem o céu ousava ser. Quantas vezes brincávamos de esconde-esconde na sua cabeleira? E me contaram que nos meus tenros meses ela me "torturava" jorrando leite das mamas direto no meu rosto. Nem me digam que isso me traumatizou, pois eu queria sim lembrar. :)

E ela jamais se deixou endurecer pela obrigação de fazer sentido em tudo como as pessoas adultas esperam fazer. Nós ríamos como tresloucados diante de piadas ingênuas ou esquetes bobos dos trapalhões. 

Não lembro de minha mãe desistindo da força da reclamação. Mas não era uma postura irônica e pretensiosa de adulto, mas uma birra infantil de lutar pelos seus direitos inocentes. Ai de quem lhe ameaçasse o direito de assistir sua novela favorita!

Nossa história juntos valeria muitas páginas, mas isso apagaria os lampejos, fragmentos de lembrança que vira e mexe me inundam de saudade irracional indescritível. Como agradece-la por me levar consigo ao trabalho nas plantações de café? Ali, aos 8 anos, nas minhas férias da escola, eu reinava absoluto nos cafezais "protegendo" mamãe e as outras senhoras empenhadas na colheita. 

Onde mais eu poderia ficar o dia todo observando os ninhos dos pássaros sem nome e pescar guarus nos rios cristalinos da infância? Minha mãe me educava brincando junto. E foi sempre assim com todos os filhos.

Nossa história não é perfeita, é como um texto esparso. Minha mãe adolescente foi embora aos 59 anos. Lembro quando me prometia presentes, que não podia comprar, apenas para me convencer a tomar as injeções quando eu tinha febre na infância.  

Com o tempo, fui identificando quando mentia para me proteger. "Estou melhor", dizia ela em todas as visitas que lhe fiz no hospital em seus últimos dias. Mas eu percebia que seu brilhante azul do olhar cada vez me olhava mais desfocado; via mais longe, através de mim, através de tudo; via o que eu não queria enxergar. Morreu minha companheira de infância, mas a conheço bem. Se lhe fosse concedido um momento e me dar algum conselho agora, do fundo da sua sabedoria afiada, seria algo como:

"- Ai tato, fica pensando besteira não, tonto, segue a vida fiio! Morrê nóis morre mesmo!" 

P.S.
Em singela homenagem à minha mãe, Neusa Aparecida Burato Batista, falecida em 4 de novembro de 2014. 



Unknown

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